Enxergue o que vem de dentro


Abriu os olhos e não pôde ver o que estava acontecendo. A partir desse momento, os sentidos era o que ela tinha em mãos.

Tateou os lençóis e sentiu que ali deixara sua vida escorrer por entre os dedos. E nem as lembranças lhe restavam. Sentou ainda atordoada e se viu perdida entre os travesseiros que se espalhavam pela cama, imensa como um oceano. Acreditava que aquele era o seu quarto, mas estar sem visão deve afetar também a memória. Não conseguia lembrar nem o seu nome, quiçá o que tinha vivido na noite anterior. Será que bateu a cabeça quando chegou cambaleando da festa? Mas como estou me lembrando disso?

- João, cadê você? - gritou a moça quase se entregando ao desespero. Nada de respostas.

Seu mundo estava escuro como um túnel, e a luz nem dava sinal ao final dele. Conseguiu se levantar com dificuldade pelas dores no corpo e, trombando em tudo pelo caminho, alcançou um chão frio que devia ser da cozinha. Estava descalça e nua: de corpo e memória. Apalpando minuciosamente os objetos, encontrou uma cadeira e se deixou despencar. Ela não tinha mais controle para ficar em pé.

- João, meu amor, pelo amor de Deus, me ajuda! - Aonde se enfiou o marido, que sempre esteve ao seu lado? 

No momento que ela mais precisa, ele parece ter abandonado a casa, a vida. Mas ainda está presente no pouco da memória que a resta. Ela ainda se perguntava, com lágrimas nos olhos que não funcionavam mais, o que estava acontecendo. Da sala, escutou a porta se abrindo. E gritou desesperada:

- Alguém me salva dessa escuridão! Dessa vez, ouviu a resposta. E sentiu um alívio por não ter perdido também a audição.

- Amor, onde você está?

- João, acho que estou na cozinha! - Sentiu os braços dele envolvendo-a e não conseguiu mais segurar o pranto.

- Eu não estou enxergando, que porra é essa? - Ao terminar a frase, ela ouviu um suspiro, seguido de um choro contido.

- Fala comigo, João, me diz o que aconteceu!

João não sabia o que dizer, nem como contar que ela tinha sofrido um grave acidente na volta da festa, 5 dias atrás, e estava cega. Era irreversível. Num instante de intervalo entre o silêncio e a resposta, ela pensava que o pior não era esperar, e sim não saber pelo o que se espera ouvir.

A angústia paira entre os dois, que choram juntos. O que outrora era um mar de tranquilidade se transformou em uma tormenta, daquelas que derrubam barcos e bagunçam mentes. Ela escuta o pior e não sabe se quer morrer ali, agora, ou quer se matar com as próprias mãos. Se escolher a segunda opção, vai ter ainda que pedir ajuda a alguém para pegar um objeto pontiagudo, que ela sozinha não pode ver. O chão, frio, parece ter se aberto, e junto com João, ela mergulhou naquele poço sem fundo.

Eles se abraçaram sofregamente sem saber pra onde ir, mas com a certeza de que seguiriam juntos. João se ofereceu para guiá-la até o quarto e ela aceitou que ele a guiasse pelos novos e tortuosos caminhos da vida. Ele a deitou na cama e, quando ela fechou os olhos, abriu-os para dentro. E adormeceu.

Ao despertar novamente, abriu os olhos e enxergou João dormindo ao seu lado. Viu que tudo não passava de um terrível pesadelo. Decidiu então encarar o susto quase real como um aprendizado. E sentiu que precisava, de agora em diante, enxergar com os olhos do coração. 

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