Nair, uma doce lembrança



Sua memória se esvaía aos poucos, mas o coração, forte e lúcido, continuava no mesmo lugar.

Toda perda tem início quando começa. Com ela, não seria diferente. Trocava o nome dos filhos, queimava o arroz na panela de tampa de vidro esquecida no fogão. Parecia simples. No início da perda. Como num piscar de olhos, só que por anos a fio, aquela mulher cheia de bravura foi esmaecendo. O corpo já não respondia, a mente parecia ter estacionado em um tempo distante, de um passado qualquer. A alegria, marca de sua personalidade, continuava com ela e por vezes aparecia, porém escondida em meio ao esquecimento.

Em suas mãos trêmulas e calejadas de tantas vivências, a oração não esquecida era um lampejo, vinha como uma prece lá do fundo da memória que morreu muito antes de ser enterrada. A bravura, por hora, transformou-se em braveza. E ela sempre fora brava, mas aquela que estava dizendo palavras ríspidas ou xingando em momentos oportunos já não era ela. Comer, momento que ela tanto gostava, passou a ser um ato efêmero: suas lembranças não tinham mais espaço para coisas tão corriqueiras.

O final de cada dia era uma vitória. E todo dia uma grande batalha, travada entre ela, sua memória e a família que a via se perder dentro da própria casa, ou tentar fugir pelo portão que, por descuido, ficou entreaberto. Havia também os momentos em que ela, pelas grades da casa de seu filho, ficava chamando as pessoas que passavam pela rua para dizer que estava presa ali e precisava de ajuda para sair. Mas logo se esquecia disso também. E recomeçava seus pedidos para voltar para a sua casa.

Algumas vezes ela conseguiu sair despercebida e ganhar a rua, sozinha e sem saber nem mesmo seu próprio nome. Com a família em apuros, sempre fora encontrada. Sempre sorrindo. Sempre em busca de um único caminho.

Foram muitos anos lutando contra a doença e a favor da sua saúde física e mental. E a família se agarrava ao fato de que o doente não sofre, e sim quem está ao seu redor.

Quase no final de tudo, a lembrança só tinha uma direção a ser seguida: seu grande sonho. E esse mais lindo sonho, ah, dele ela nunca se esqueceu.

A sua casa, a que sempre sonhou e nunca teve, na verdade sempre esteve ali. E hoje ela mora nela, só que dentro de nós.

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